quinta-feira, 23 de junho de 2011

"Escritores da Liberdade" - Resenhas



RESENHAS DE ALUNOS:

Resenha de autoria de William Pires de Almeida (will.almeida83@hotmail.com):

O formato de filme no qual um educador luta contra tudo e contra todos para erguer a auto-estima de seus alunos e assim dar-lhes uma nova perspectiva de mundo já se consolidou como um subgênero do cinema norte-americano. Destacam-se, entre outras, obras que marcaram época, a exemplo de "Ao mestre, com carinho" e "Sociedade dos poetas mortos". O filme "Escritores da liberdade", do diretor Richard LaGravenese, segue a mesma linha dos seus predecessores, sem acrescentar muita coisa (talvez não acescente nada) ao bom cinema.
É bastante questionável o valor estético do seu roteiro, porém existe na obra uma bela exaltação da importância da educação na vida do jovem, da promoção da leitura e da escrita como instrumentos capazes de transformar individual e socialmente qualquer cidadão.
A trama se passa em um centro educacional dos E.U.A., quando a jovem professora Erin Gruwell chega para lecionar Inglês a uma turma vista como problemática, composta por jovens marginalizados dentro e fora do colégio, com preconceitos vários entre si, com a violência a espreitá-los na rua, cheios de dificuldades familiares. Gruwell, uma professora visionária, romântica, passa por cima da burocracia do ensino, de uma diretora má, de professores indiferentes, da inicial aversão da sua classe com um modelo pedagógico baseado na tolerância, amizade e no conhecimento da realidade dos alunos.
Um excelente conto para aqueles que se comovem facilmente - e comovem-se por estarem comovidos. Demasiado piegas, demasiado clichê, desde as primeiras cenas, prevemos seu desfecho. Temos o "kitsch" moralista de Hollywood agindo mais uma vez, sob o disfarce de um conteúdo edificador. Com um tanto de paciência, vale a pena ser assistido.


Resenha de autoria de Márcia Ferreira da Silva (marcybutterfly@live.com):

Baseado em fatos reais, "Escritores da liberdade" é um filme que mostra a dura realidade de adolescentes da classe baixa. A história foca-se numa escola cheia de conflitos e preconceitos trazidos por adolescentes envolvidos em gangues. Conflitos que por serem violentos e se manterem constantes, muitos professores desistiram de enfrentar. Mas o grande foco da história é a atitude da jovem professora Erin Gruwell que consegue, apesar de ter afetado de uma forma ruim sua vida pessoal, fazer com que esses adolescentes se libertem das gangues e até mesmo passem a ter esperanças de uma vida melhor.
Esse filme, embora tenha sido baseado em histórias reais de pessoas que viveram com muitos problemas, até mesmo perdendo amigos queridos por causa das gangues, teve um final feliz, porém podemos analisar, através da história, atitudes preconceituosas, racismo e desigualdade social existente ainda em nossos dias e, infelizmente, enfrentados dentro de nossas próprias escolas.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Aventureiro (Texto de autoria de Diego Porciuncula)

Hoje decidi acordar no meio da madrugada e conhecer o vazio que existe depois da meia-noite. Levantei-me da cama e coloquei os pés descalços no chão. Não quis calçá-los ou me olhar no espelho e ajeitar os cabelos desarrumados. Estava ansioso para vagar no meio da escuridão.
Depois de abrir a porta de casa, segui em passos lentos e silenciosos. Senti o vento me beijar e o céu se abrindo sobre mim. Então, percebi que a madrugada não é tão vazia e quanto mais me permitia, o mundo tornava-se maior. Sim, o céu era tão escuro quanto a rua que me esperava ansiosa.
Continuei a caminhada na companhia das estrelas. Tão lindas, cheias de luz, de brilho ofuscante... Elas me conduziam todas de mãos dadas. Vi casas que se moviam, navios gigantes, quimeras, árvores falantes; ouvi sons silenciosos, e arrepios que desconcertam me vinham à pele.
A madrugada escura é um tempo sem intrigas. Tudo o que se esconde, se faz vivo na escuridão. Gritos, vozes, sombras e maçãs enormes olhavam para mim; folhas que ganharam vida, águas que corriam longe e cavalos marinhos. De repente, não havia distinção de mundo. Tudo era igual, tudo ganhara vida. Minha sombra tomava a frente de tudo sem repetir os meus gestos, meus olhos nem sequer abriam. Eu estava curioso e perplexo com esse novo lugar. Tão grande, cheio de pecados e exclamações!  Era vida, fantasia, alimento para a alma. Vi estátuas movendo-se; era loucura! Eu não queria voltar. Não naquela hora enquanto havia muito para ver e sentir.
Mesmo de pernas cansadas quis seguir. E eu ia... e eu ia... Gostaria de ir até o fim! Sei que havia muito a ser descoberto. Tinha visto formas sem tamanho, objetos com vida, moradas em movimento e eu sem nada a temer.
Permaneci absorto quando as estrelas me indicaram o momento de regressar. Enquanto refazia os passos de trás, as maçãs já não cresciam, os edifícios permaneciam inertes e apagados; procurava e já não encontrava cavalos marinhos. Minha sombra me acompanhava imitando os meus gestos em silêncio. Agora, estou ainda descalço no meio da rua deserta, com frio e sentindo arrepios. Estou voltando para casa, retornando ao meu corpo e então, venci os meus medos, aqueles mesmos que eu tinha de mim.
Diego Porciuncula é aluno do curso de Letras Vernáculas noturno da Universidade Federal da Bahia.
Blog de Diego: http://blogvidaeletras.blogspot.com/

HAICAIS DA TURMA

HAICAI
(em japonês: 俳句, Haiku ou Haikai)

  É uma forma poética de origem japonesa que valoriza a concisão e a objetividade.


HAICAIS DA TURMA DE LET A09 - 2011.1, turma 2 - Letras Vernáculas (noturno)




Adriele Santos: 
1.
A liberdade é uma pintura
Que só quem é livre
Poderá pintar.

2. 
A chuva passa, e eu passo com ela
Virei um passado
Na sua janela.

Ana Paula Silva:

1.
Produzir haicai,
Nossa, que horror!
É pior que ir ao doutor.


2.
Estudar, produzir e ler
É melhor que estar
Em casa assistindo TV.

3.
Estava na aula quando chegou a inspiração
Foi tão forte...
Que partiu meu coração.


4.
Estava na aula buscando inspiração,
Veio a professora e...
Tirou minha concentração!


Carolina Peixinho:

1.
Enganei-me,
Eu dizia “eu te amo”
Ele só dizia “eu também”.


2.

A certeza que se tem
É de que, ao certo,
Ninguém sabe de onde vem.

3.
O tempo parou de contar
Só para não dar o azar
De envelhecer.

 4.
Os cabides vazios
Disseram-me
“Ele partiu”.

5.
A pedra e o sabão
Cúmplices da lavanderia
Assassinaram, no rio, a sujeira.

6.

Vou acampar no quintal,
Só pra dizer
Que dormi fora

 7.
Ele me atravessou
Quando atravessei
E o sinal fechou

8.
A operadora me fez pensar
Que era você no celular,
Quando o torpedo chegou


Diego Porciuncula:


1.
Vivo os meus sonhos
Dou vida ao meu mundo
E a cada segundo descubro o que sou.

2. 
Sentimento, ar puro
Pássaros, flores, o mundo
A imensidão em mim.


3.
E quando me levanto seco do meu pranto
Vivo, inteiro, pronto
Aprendo um pouco mais de mim.



Emanuelle Oliveira:

1.
Há um momento em que devo
Ser filha, mãe, irmã, esposa
Até quando devo aguentar?

2. 
Fato inédito bastante peculiar
Mediante as mudanças,
Busquemos conhecimento sem parar.



Etelvina Moreira:

1.
Choveu sem parar,
Molhou pra danar,



2.
O amor na maturidade
Apaixonei-me aos 47
Do segundo tempo
É gooollll....


Jackeline Silvestre:
1.
Você me pede para eu não te esquecer...
Vou lhe contar um segredo...
Eu não paro de pensar em você!


2.
Não tenha medo das mudanças que possam ocorrer
Vá em frente!
Tudo pode acontecer!


 

Joana Angélica Costa:


1.
Inspiração:
Algo que não vem
Quando mais preciso dela

2.
A felicidade está nos detalhes
Sou feliz!

3. 
O impossível não existe,
O que existe é a falta de coragem
De lutar.

4.
Viver é amar intensamente
Ame!

5.
Não se deve desistir antes de tentar
Quem tenta sabe o final
Quem não tenta...

Joseane Santos:


1.
Já não se faz mais filhos como antes,
Pois com a transformação do mundo
Foram levadas a afetividade e a compreensão.


2.
Ao sentar-me na beira da praia
Olhando a imensidão do mar
Pude perceber a grandeza do amor de Deus.

Lidiane Ferreira:


1.
Por causa de um olhar
Vivo a pensar em alguém
Que vivo para amar.

2.
Nas sinaleiras brasileiras
Malabaristas
Quando mudaremos essa rotina?

3.
A criança chora,
Tristeza ao meio-dia
Deus, cadê o pão de cada dia?

4.
Milhares de espermatozóides
Enfim...
Aprovada no vestibular!

5. 
Virei coruja,
Virei morcego,
Fazer UFBA me deixou sem cabelo!


Márcia Ferreira:

1.
As promessas de Deus são dádivas,
As dos homens são dívidas.

2.
Em um dia programado,
Começamos nosso espaço.
Em um dia inesperado,
Nosso espaço foi interrompido.

3.
O perigo do amor é estar
Perigosamente apaixonada.

4.
Espero você, não me canso
Eternidade!

5. 
Quero ser assaltada,
Roube meu coração para te amar.

6. 
Viver por estar viva?
Ou viver pra continuar vivendo?


Maria Alves:

1.
Amor nada,
Paixão furada!
Que vida errada!


2.
Campos e prados,
Cansado fardo,
Suado, amado.


3.
Dúvida amarga:
Continuar parada?
Seguir cansada?

Maria Aparecida Castro:


1.
Estudar é amargo,
Porém, seus frutos são doces.



Nadira dos Santos:
1. 
Cada caminhar
Uma vida.

2.
Leve como um vento,
Flutuar...

Denso chão,  será?



Patrícia Santana:

1.
Rapaz, escrever não é fácil!
Mas se não tentar
Como vai formar?

2.
Pegar buzú todo dia,
Nossa quanta agonia!
Em Pirajá, então,
Sentado? Só no rabecão.

3.
Haicai, nossa quanto ai!
Isto é algo complicado
Parece até que está assado.


Sara Bernardo:
1.
Dói-me a saudade
Do que um dia fui e
Não mais serei.

2.
Já não sei em que porto me perdi.
Se me perdi, já não me importo
Se for por ti ... que seja porto!

3.
O vermelho dos meus olhos
Vem do verde do sorriso,
Alegria, alegria! Viajei mas já voltei!



Tacila Dantas:

1.
O tempo passa meio lento
Leva-me leve
Como o vento.

2.
Ando muito,
Vejo pouco,
Penso tanto!

3. 
Dia de chuva, caneca de café
Dias de sol, crianças brincando
Dia nublado, tudo parado.


Tairys Nery:

1.
Entrei na chuva,
Não vou me molhar
Só quero as nuvens.

2.
O vento passa,
A vida fica parada,
E o sol não brilha

3.
O inverno chegou mais cedo
E esfriou o meu verão

Tatiane Abade:
1. 
Distância,
Espaço vazio entre
O seu eu e o meu.

2.
A chegada do dia,
Festa às portas,
O tempo é relativo...


3.
Todo dia
Buzú cheio
Vida vazia!

Wiliam Almeida:
1.
O tédio no amor
Fidelidade em agonia
A monogamia é uma dor!

 
2.
Todos temos uma vez
A cada instante, com o Rei em xeque,
Com a Morte, joga-se xadrez.




domingo, 15 de maio de 2011

EXTRA, EXTRA! - Virou notícia

Os alunos de LET A09 do curso Letras Vernáculas da UFBA – Noturno (Semestre 2011.1, Turma 2) produziram o gênero textual notícia de jornal com base no conto “A promessa de Onorina” de Alejando Reyes. Confiram abaixo algumas produções:


 1)
Veio a óbito na noite deste sábado Onorina – ambulante, indigente, sofredora. Antigos vizinhos contam que ela vivia sozinha há muitos anos, perdeu sua pequena casa durante a ação de renovação e reestruturação do Centro Histórico da cidade feita pela Prefeitura de Salvador. Ela não teve sua moradia remanejada de lugar, tão pouco foi reembolsada por sua perda. Desde então, virou moradora de rua. Onorina tinha problemas mentais e faleceu, aparentemente, de causas naturais. Seu corpo foi recolhido esta manhã, na área da Cidade Baixa, e foi levado ao Nina Rodrigues. (Aluno: William Pires Almeida)

2)
MORTE DE ONORINA – Morre Onorina, a mulher que incansavelmente ia, todos os dias, ao porto esperar seu filho Prudêncio, que, aos 16 anos, partiu em um navio mercante rumo a terras desconhecidas. (Aluna: Nadira Maria S. dos Santos)

3)
Onorina, vendedora de doces, morava no Pelourinho em um casebre aos fundos de uma viela.
Em um dia, na rampa do Porto, vê o suposto filho que não a reconhece. Deitou-se no chão, fechou os olhos e morreu. (Aluna: Emanuelle Oliveira S. de Carvalho)

4)
Mendiga encontrada morta – Foi encontrado, no porto próximo ao Mercado Modelo, o corpo de uma mulher idosa, que, segundo alguns moradores do local, se chamava Onorina e era vendedora de doce. Alguns disseram que antes de sua morte passara algum tempo mendigando no local devido à perda de sua residência. Ainda não se sabe a causa da morte da mendiga, mas de acordo com a polícia, ela teve morte natural. (Aluna: Márcia Ferreira da Silva)

5)
Morte da mendiga Onorina – Morre hoje, dia nove de maio, Onorina, mulher que, após ter sido expulsa de sua humilde residência, foi morar nas ruas, sobrevivendo de esmolas e ajuda dos outros. Segundo informações, ela teria feito uma promessa para seu filho, que ela só iria morrer depois que o encontrasse. As informações colhidas foram de que ela teria encontrado o seu suposto filho, Prudêncio. (Aluna: Ana Paula Silva Santos)

6)
Onorina Piedade dos Santos, moradora de rua do Centro Histórico de Salvador, amanheceu morta, após anos de sofrimento e espera pela volta do seu filho Prudêncio, a quem tinha prometido só morrer quando ele regressasse. Outros moradores de rua disseram que Onorina, antes de deitar-se em seu papelão pela última vez, com uma expressão feliz, nunca antes vista, balbuciou as palavras “Ele voltou” e “Está tão bonito”, depois não acordou mais. Não foram encontrados parentes nem o filho Prudêncio. Onorina foi enterrada como indigente. (Aluna: Tacila Dantas da Silva)

7)
A vendedora de doces, Onorina, de sobrenome desconhecido, teve sua casa derrubada nesta sexta-feira (06) por volta das 17h30min, no bairro do Pelourinho. Um mandato governamental de derrubada de residências pode ter sido a causa da morte da vendedora que, segundo testemunhas, foi posta para fora da casa pelos homens que trabalhavam no local. As testemunhas também informaram que a vendedora estava indignada e aos prantos. O corpo da mulher com idade aproximada de 48 anos foi encontrado próximo à praia na Cidade Baixa. (Aluno: Diego Porciuncula)




sexta-feira, 6 de maio de 2011

CONTO - A promessa de Onorina (Alejandro Reyes)

Todos os dias, às seis da manhã, Onorina abria o pequeno baú que guardava sob a cama e, com infinito cuidado, começava a tirar as lembranças que ali entesourava, colocando-as, uma a uma, sobre uma pequena e desalinhada mesa. Havia ali um gato de pelúcia, sujo e completamente corroído pelo tempo, um par de sapatos de bebê, duas bolas de gude - uma azul e outra verde -, uma carteira de estudante de primeiro grau, um velho retrato e, finalmente, o maior de seus tesouros: uma carta, amarelada e tão antiga, que havia de desdobrá-la com o cuidado de um miniaturista chinês, para evitar que se transformasse irremediavelmente em poeira. Sentada frente à mesa na única cadeira que possuía, Onorina  arrumava seus pertences com meticulosidade de relojoeiro: à esquerda, em leve ângulo, os sapatos; à direita, o gato de pelúcia, sentado; no meio, o retrato, e frente a ele, a carteira de estudante; as gudes, ela as colocava em frente aos sapatos, a azul em frente ao esquerdo e a verde em frente ao direito. Depois abria a carta com extraordinária cautela, desdobrando parcimoniosamente as três páginas de que era composta, enquanto um resplendor beatífico iluminava gradualmente seu rosto enrugado. E, então, ela lia em voz alta. Não sabia ler, mas isso pouco importava; de fato, o que para outras pessoas teria representado um obstáculo intransponível, para Onorina não era mais que um obséquio de Deus ou de alguma outra divindade que, por ventura, ter-se-ia interessado em seu destino, pois lhe permitia receber, a cada dia, novas notícias, fazendo deste rito matinal um momento de ditosa expectativa e quotidianamente renovada alegria.
"Querida mamãe", começava todas as cartas, "espero que você esteja bem de saúde e tão bonita como você sempre foi". "Se você soubesse, meu filho", pensava, também em voz alta, e continuava sua leitura. Seguia então o relato cativante de toda uma série de aventuras e viagens a terras remotas e desconhecidas, conquistas de belas mulheres, perigos dos quais dificilmente escapava, mostras de habilidade e destreza, de valentia e coragem, interrompido pelas freqüentes e emotivas interjeições de Onorina, cujo rosto, crispado por momentos pela mais profunda preocupação e angústia, não deixava de transparecer um radiante orgulho materno perante as desatinadas andanças do seu filho. Invariavelmente, as cartas terminavam dizendo:
"Agora estou tentando conseguir uma grana.
Logo que eu tiver, estarei de volta a casa,
para a gente viver juntos como antes.
Por favor, não morra antes de eu voltar.
Teu filho, Prudêncio."
"Como são difíceis os pedidos dos filhos!", exclamava Onorina em voz alta. "Mas eu prometi e vou cumprir, ainda que eu tenha de agüentar esta vida cem anos." E duas lágrimas percorriam trabalhosamente os sulcos que os anos haviam gravado no seu rosto outrora belo, enquanto suas mãos cansadas dobravam cuidadosamente a carta e começavam a arrumar novamente seus tesouros no baú.
Às sete horas, regava suas inúmeras plantas e flores, todas elas com nome próprio, e lhes contava as novidades que Prudêncio relatava em sua carta, no caso de alguma delas não ter escutado a leitura em voz alta. Perguntava-lhes também sobre o estado de saúde das suas folhas e ramos, sobre as formigas e outros insetos que, de vez em quando, atormentavam sua plácida existência, provocando uma molesta e pertinaz coceira, e sobre os capulhos que em algumas delas começavam a florescer. Perguntas todas que ela própria respondia, interpretando com infalível certeza o que suas companheiras de solidão lhe diziam com o silente meneio das suas folhas sob o sol.
Às sete e meia, vestia o mesmo vestido azul de todos os dias, remendado infinitamente para burlar os estragos do tempo e para responder às necessidades de um corpo tão dramaticamente transformado através dos anos. Despedia-se então das suas plantas e percorria o caminho desde o quarto onde vivia, construído precariamente com tábua e papelão na varanda de fundo de um antigo sobrado, até a porta que dava para a rua, percurso extremamente perigoso para quem não estivesse habituado a andar por esses lugares, pois tinha de se esquivar daquelas partes do piso que, a qualquer momento, se desmoronariam, carcomidas pelo cupim, o descuido e a miséria, e das outras que já haviam caído, deixando pequenos ou grandes buracos, como aquele por onde desapareceu, uns anos atrás, Florisvaldo, o caçula de seu Nelson, transformando-o nessa massa humana que agora mal se mexia em seu canto no quarto e que passava os dias olhando a vida passar pela janela e balbuciando incoerências. Tinha também de se esquivar do pedaço de viga que caiu um tempo atrás, bloqueando parcialmente a porta que levava ao canto onde morava Argemira com seus oito filhos e seis gatos, para depois atravessar o estreito e fedorento corredor que levava à escada de saída, não sem antes passar em frente ao único banheiro que servia às sete famílias que ali viviam.
Já na rua, Onorina dirigia-se com seu passo cansado rumo ao Terreiro de Jesus, observando o piso diligentemente para evitar a desagradável experiência de meter o pé num pedaço de excremento humano, seja os que foram produzidos por ali mesmo ou os que as empregadas dos hotéis varriam nessa hora das escadas, utilizadas regularmente por todo o tipo de criaturas noturnas para ali se desembaraçarem do peso das suas entranhas.
O Terreiro nessa hora resplandecia com sua grandeza colonial. Alguns bêbados dormiam sob as árvores ao lado da formosa fonte, as lojas começavam aos poucos a abrir as suas portas, e alguns turistas atravessavam a praça rumo ao largo do Pelourinho. Era, quiçá, a hora mais bela do dia, quando tudo estava impregnado de lentidão e silêncio. Mas Onorina nada disso percebia. Ela caminhava no seu próprio mundo, povoado por suas próprias belezas e suas próprias misérias. Caminhava e falava consigo mesma. Não como muitos pensavam, com algum ente invisível, produto da sua imaginação; Onorina falava consigo mesma pois, muitos anos atrás, quando morreu seu marido, quando seu filho partiu, quando a abandonaram aqueles que se diziam amigos, compreendeu que a vida era feita de solidão e que no mundo reinava a incompreensão. Decidiu que tanto fazia falar com os outros ou falar consigo mesma, pois, afinal de contas, o resultado era igual: continuamos vivendo sós e morremos sós; e, pelo menos, falando sozinha, não tinha que agüentar impertinências alheias nem discutir com gente que tivesse opiniões distintas das suas, pois ela nunca discordava de si mesma e, além disso, suas conversas eram bem mais interessantes do que as do resto das pessoas, e não estavam sujeitas ao azar dela se encontrar, ou não, com alguém que pudesse se interessar pelas coisas que, em determinado momento, surgiriam em sua cabeça.
Assim, conversando amenamente em tão prazerosa companhia, entrava na catedral e sentava-se no mesmo banco de sempre, nem muito perto nem muito longe do altar. Dali podia ver claramente a imponente imagem de São Salvador, pousado lá no alto, tão longe do mundo e de suas dores, reluzindo mais esplendoroso e mais radiante que nunca, graças às mãos milagrosas de um magnífico restaurador peruano que por esses rumos havia passado, dotando sem dúvida o já restaurado Cristo de uma maior capacidade ou vontade de escutar as súplicas que Onorina lhe dirigia diariamente ha tantos anos, para que lhe devolvesse seu filho, ausente desde que, na terna idade de dezesseis anos, partiu num navio mercante rumo a terras desconhecidas.
Às oito, saía da catedral e dirigia-se, com seu passo lento e alquebrado, à Ladeira da Conceição, a qual descia com extraordinária habilidade, considerando-se o estado desconjuntado da sua triste ossatura. Não usava o elevador, porque assim economizava cinco centavos, mas também porque tinha medo de se sentir prensada numa lata com tanta gente, como sardinha. Ao passar em frente à igreja de Nossa Senhora da Conceição, persignava-se, mas não entrava para rezar pela volta de Prudêncio, pois não queria perder um minuto para chegar ao porto, negligência que, sem dúvida, tinha algo a ver com a demora do seu filho, pois, como todos sabem, é a ela, a Nossa Senhora da Conceição, e não a São Salvador, a quem se deve rezar por aqueles que partem ao mar, pois ela é nada menos do que Iemanjá, deusa das águas, rainha única do destino dos homens no oceano. Alheia a estas sutilezas divinas, Onorina chegava ao porto e lá, sentada junto aos pescadores, observava o mar impassível, durante exatamente duas horas e um quarto. As velas dos barcos lançavam fulgores de brancura e beleza sobre esse fundo de azul impecável, escuro e profundo primeiro, esverdeado ao aparecer a silhueta langorosa da ilha de Itaparica, límpido e transparente ao fim, bem ao longe, lá onde se perde o pensamento e o sonho, lá onde vivem Deus e as outras criaturas celestiais que, segundo se diz, sem que jamais uma observação cuidadosa da vida tenha-o comprovado, guiam os passos solitários dos homens no mundo. O forte de São Marcelo languescia na sábia e profunda decadência da velhice, exsudando tempo e história das suas pedras antigas. Homens rudes e suarentos vendiam peixe nos pontos de venda junto à rampa do Mercado Modelo, alguns bêbados discutiam bebendo cerveja numa barraquinha vizinha, e um berimbau se ouvia acompanhando uma velha cantiga: " E me falou meu mano velho, me falou tão tristemente, tou cansado de cantar, este samba entristecente...". Mas para Onorina, nada disso tinha importância; ela só tinha olhos e ouvidos para procurar no mar algum indício do navio no qual chegaria a qualquer momento Prudêncio. Havia no seu rosto uma expressão de resignada e melancólica expectativa, expressão que só por uns momentos se quebrava com o fulgor de uma alegria fugaz, inspirada por alguma visão prometedora que só ela via, mas que se dissipava tão rápido quanto havia chegado, deixando no seu lugar o rastro muito tênue de uma amargura inconfessa.
Às dez e meia, compreendendo que não, não seria esse o dia em que voltaria Prudêncio, talvez amanhã, subia a ladeira de volta à sua casa, chegava à Praça da Sé, e desta vez não passava pelo Terreiro; entrava na Rua Três de Maio, virava na Rua da Oração, e subia finalmente as escadas que a levavam de volta ao humilde aposento.
Às onze em ponto, Onorina carregava sobre a cabeça o tabuleiro cheio de doces de coco, preparados na noite anterior, e um pequeno banco na mão direita. Saía novamente rumo ao Terreiro onde, sob a sombra de uma árvore luxuriante, acomodava-se para começar sua faina do dia. Sua árvore estava disposta estrategicamente para ela poder espreitar, ao mesmo tempo, a catedral e a igreja de São Francisco, e a elas mandava freqüentes olhares reprovadores que, claramente, exprimiam um calado e orgulhoso desgosto ante a indiferença tanto de São Salvador quanto de São Francisco, e tanta piedade inspirava o sofrimento calado desse olhar, que não pareceria estranho se a qualquer momento um deles, comovido enfim pelas penas de tão inocente criatura, descesse do seu altar para lhe trazer, pessoalmente, pela mão, o seu filho Prudêncio.
Durante as seis horas em que permanecia sob a árvore, interrompendo seu trabalho somente durante meia hora para comer seu almoço de feijão e farofa no bar da esquina, Onorina vendia praticamente todos os seus doces, apesar de não serem particularmente deleitosos ao paladar, devido aos numerosos descuidos que ocorriam durante sua preparação, resultado das distrações próprias da interminável e fascinante conversa consigo mesma, que se prolongava desde que acordava até ir dormir. Mas era justamente esta conversa que lhe garantia a assiduidade da sua freguesia, a qual comprava seus doces pelo puro prazer de escutar as memoráveis reflexões sobre a vida, a morte, a ordem divina e as inconveniências dos talcos para bebês, sobre os quais lembrava ter ouvido, em algum lugar, que podiam causar cegueira quando não utilizados devidamente. Estas conversas solitárias também lhe causavam, é justo dizê-lo, certas agressões e maldades de moleques sem nada melhor para fazerem do que atormentar uma solitária velha, e que se divertiam zombando dela, jogando-lhe bolas de papel, puxando o seu vestido e fingindo roubar os seus doces. Mas Onorina não se alterava; comentava, consigo mesma, a deplorável decadência dos valores e o desrespeito da juventude, e estas reflexões a conduziam a novas e profundas cogitações sobre os caminhos do destino e as vicissitudes do existir, que a distraíam totalmente dos seus jovens agressores.
Às cinco da tarde, apanhava seu tabuleiro e seu banco e caminhava rumo à mercearia, onde comprava coco e açúcar para os doces do dia seguinte. Depois voltava para casa, preparava sua mercadoria, e às sete estava de volta ao Terreiro, caminhando rumo à igreja de São Francisco. Lá sentava-se perto do altar, envolta em tão áurea e exuberante profusão de anjos e querubins, que seria impossível imaginar que suas súplicas, tão humildes e tão sinceras, não seriam escutadas e levadas prontamente ao palácio desse grande Senhor que rege o mundo desde seus distantes e inacessíveis confins etéreos, e que Ele não responderia com a rápida e inequívoca determinação com a qual castiga quotidianamente aqueles pecadores que se afastam da Sua lei. Rezava durante três quartos de hora, dirigindo-se alternativamente a Jesus e a São Francisco, ainda que seja possível imaginar que nem um nem outro davam-lhe muita atenção, pois Jesus estava morto e São Francisco muito ocupado tirando-o da cruz.
Às oito, de volta no seu minúsculo mas querido quarto, tirava o vestido, despedia-se das suas plantas, despedia-se de si própria, deitava-se, fechava os olhos, e dormia um sono sem sonhos.
Esta vida, com suas penas e suas incertezas, mas não inteiramente desprovida de certos prazeres, poderia ter continuado durante muitos anos mais (até o dia em que os santos lhe trouxessem de volta Prudêncio, ou até o dia em que a Biologia com seus inelutáveis desígnios decidisse negar-lhe a possibilidade de cumprir sua promessa e a levasse com ela rumo à Grande Incógnita, sem antes ter visto seu filho), não fosse porque a Ordem e o Progresso, que até então haviam percorrido todo o Pelourinho, detendo-se no Terreiro de Jesus, decidiram avançar até o bairro de São Dâmaso, libertando, assim, seus habitantes da miséria, ou, para ser mais exato, libertando o resto da população da necessidade de olhar a miséria de tão perto. Chegaram um dia os representantes de um renomado órgão governamental e, esquivando-se corajosamente de vigas caídas e de buracos mortais, informaram os habitantes da infeliz residência de que deveriam mudar-se em menos de um mês e que, caso se apresentassem prontamente no escritório de dito órgão, receberiam justa indenização pelo incômodo de ter que perder seu lugar de residência ou trabalho. A Onorina de nada informaram, pois ela não tinha o costume de escutar humano nenhum que não fosse ela própria, e muito menos um desconhecido. Argemira, sua vizinha, explicou-lhe por todos os meios a acompanhá-la para receber sua indenização, mas Onorina nada compreendeu, pois achou absurdo que alguém quisesse pagar pelo miserável quartinho onde morava, e muito menos que alguém teimasse em privar uma inofensiva velha do único lugar onde podia e sabia viver, com suas plantas, seu baú, sua cama, sua mesa, sua cadeira e seus horários. Não foi reclamar seu dinheiro nem procurou outro lugar para morar, nem sequer quando viu os preparativos febris de cada uma das famílias do sobrado e de todo o bairro em geral, convencida de que ninguém a perturbaria e de que a deixariam continuar vivendo em paz no seu diminuto canto sem incomodar ninguém.
Foi assim que, numa terça feira, às dezessete e vinte, quando voltava do seu dia de trabalho no Terreiro, encontrou o formigueiro de homens que entravam e saíam do sobrado. Incomovível, passou entre eles e subiu vagarosamente as escadas, carregando seu tabuleiro, seu banco e uma sacola com o açúcar e o coco, pensando em voz alta que estava atrasada e que, se não se apressasse, chegaria tarde à benção das sete; e foi só quando chegou à sua varanda que seu rosto transformou-se com a mais pavorosa expressão de terror. Amélia, a mais querida das suas plantas, um hibisco que naqueles dias começava a florescer, estava destroçada; um tijolo a havia esmagado, suas pétalas, outrora juvenis e esperançosas, jaziam inertes, esparramadas pelo chão, seus talos quebrados, sua vida destruída. E suas outras plantas, Jandira, Edinólia, Valquíria, Cândida, Renata e Fátima (a mais vaidosa)... todas elas quebradas, pisoteadas, aleijadas pelo descuido dos homens que passavam atropeladamente de um lado para o outro e que, nesse momento, levavam sua cama para jogá-la no terreno baldio, onde se amontoavam os escassos pertences que os antigos moradores deixaram para trás, confundidos com todo o tipo de desperdícios.
— Não! - gritou; e foi só nesse momento que os homens deram-se conta da sua presença.
— Senhora, faça o favor de sair, a senhora não pode ficar aqui - disse o capataz.
Mas Onorina não ouvia nada, via suas plantas esmagadas, sua cama que desaparecia, sua mesa quebrada, as pouquíssimas coisas que possuía, mas que, com tão delicado carinho, cuidava e arrumava e acomodava, para que tudo estivesse no seu devido lugar e tudo gozasse do mesmo cuidado e respeito que é devido a todas as coisas de Deus; e agora estes homens pegavam seus pertences com suas mãos sujas e esmagavam e pisavam tudo, como se nada fosse sagrado, como se nada merecesse respeito, como se nada disso tivesse valor algum, o valor do carinho, do cuidado, do amor, da lembrança... da lembrança, e... meu Deus!... não!... a lembrança... seu baú... seu baú que não estava!
— Cadê meu baú? Cadê meu baú? - gritava desesperada.
— Que baú, senhora?
O capataz e outros homens, entre comovidos e perplexos, interromperam suas tarefas e observavam Onorina que corria de um lado para o outro, procurando seu baú nos lugares mais absurdos, chorando, falando sem parar, dirigindo-se às suas plantas, a Prudêncio, a São Francisco e não se sabia a quem mais, com uma desesperada e interminável torrente de palavras que, ainda que totalmente incompreensíveis, comunicavam com lastimosa nitidez o mais terrível desespero. Uns quiseram chorar, outros quiseram rir, e de fato alguns o fizeram; mas, no fundo, todos sentiram uma indefinível angústia que não era senão o reflexo da mesma impotência humana perante os inclementes e inexplicáveis caprichos do destino.
No entanto, por mais pena que se possa sentir de uma desesperançada criatura, por mais que o coração humano queira se comover pelas aflições alheias, o mundo e a vida continuam, e cada um continua carregando sua própria cruz, cada um cumprindo seu próprio destino, de forma que o capataz não teve mais opção senão a de enxotá-la, conduzindo-a até a rua com a ajuda de dois musculosos e igualmente comovidos trabalhadores.
Pelas ruas errou Onorina sem direção nem propósito, chorando e falando incoerências, pensando que deveria estar preparando os doces para o dia seguinte e lembrando que já não fazia mais sentido preparar nem pensar em nada, e pensando novamente que não poderia amanhã vender seus doces depois de ler a carta de Prudêncio e de ir esperá-lo no porto, e novamente lembrando que já não havia mais carta, nem gato de pelúcia, nem gudes, nem retrato, nem carteira de estudante, e perguntava-se como ia saber agora onde estava seu filho, o que fazia e quando voltaria, e pensava então em voltar à casa para procurar o baú e preparar seus doces e conversar com suas plantas, mas dava-se conta de que era inútil porque estava perdida, não sabia onde estava, quase nem sabia quem era ela, já não se lembrava mais de quase nada, apenas que já não tinha mais suas plantas nem seu baú nem sua cama. E caminhou e caminhou, e as crianças riam apontando a louca que passava chorando, e as mulheres olhavam sem saber se sentiam desprezo ou terror, quando não indiferença, e os homens fechavam os olhos para não ter de pensar e poder continuar bebendo e rindo e falando e dançando na noite que começava a se agitar com a expectativa de se ouvir Olodum e de se perder no frenético prazer dessa orgia, ao mesmo tempo maravilhosa e sórdida, de música, dança, cerveja e sexo, repetida toda terça feira depois da benção de São Francisco, que permitia a todos esquecerem-se por um momento que havia miséria, dor e tristeza. De tanto chorar, esgotaram-se as lágrimas; e de tanto vagar, foram cansando-se as pernas, até que, já sem saber por que estava tão triste, deitou-se no passeio e dormiu.
Quando acordou, às cinco e meia da manhã, e se deu conta de que não havia sido um pesadelo, compreendeu que já não era ninguém, que havia deixado de existir. Então quis deixar de viver, pois não há nada mais duro do que ter que viver quando já não se é ninguém, quando já não se existe; mas lembrou-se de sua promessa e soube que ainda não podia partir. Foi assim que começou a sobreviver como tantos outros o fazem, dormindo na rua, comendo o pouco que recebia de esmolas. Por um tempo tentou aferrar-se à idéia de que sua vida ainda valia, de que ela ainda existia. Ia à catedral e à igreja e rezava aos santos, ia ao porto à espera de Prudêncio, tentava inventar novos horários e novos afazeres. Mas a apatia e o desespero iam minando lentamente seu espírito, roubando-lhe aos poucos o que ainda restava de dignidade e orgulho. A sujeira, o abandono, a solidão, a perda irremediável da esperança de se ver algum dia num espelho e se dizer que algo ainda ficava belo nesse seu rosto, o desprezo raivoso do povo que a olhava como se não fosse mais do que um estorvo, algo fétido e desagradável que se devia evitar para não se sujar, algo não muito diferente de um excremento no passeio... e, pior ainda, sua lenta aceitação disso tudo, o fato de já não se revoltar contra esse desprezo mas, ao contrário, achá-lo normal e perfeitamente justificável, o fato de já não sentir vergonha nem gratidão, nem dor, nem alegria, quando alguém se apiedava dela-lhe e dava uma esmola ou fazia qualquer gesto que reconhecesse sua existência como ser humano, e agora resignava-se com a indolência de um autômato que leva à boca o que recebe na mão, se é que recebe, e quando não, simplesmente não come... tudo isto ia corroendo até a sua última fibra de humanidade, convertendo-a irremediavelmente nesse ser andrajoso e imundo com o olhar perdido no nada, nesse nada que era o reflexo do vazio do seu espírito... convertendo-a numa coleção de ossos, carne e imundície aparentemente desabitada de alma. Em pouco menos de um ano, Onorina já não ia à igreja, já não rezava aos santos, já nem sequer conversava consigo mesma e, se saía do lugar no qual havia feito seu novo lar, sob a imensa escultura no antigo local do Mercado Modelo, era para se sentar junto à rampa do porto e observar o mar, o impassível e distante mar, sem pensar, sem desejar, sem sonhar, simplesmente observando, esperando, esperando...
Passaram-se meses, anos, não se sabe quantos, pois, para quem vive como Onorina, o tempo não existe, o tempo é um túnel escuro, sem princípio nem fim, sem razão nem motivo, um escuro e perpétuo caminhar sem destino. Passaram-se os anos e já ninguém sabia por que essa velha ainda vivia, essa velha que há tantos anos já não existia. Mas ela sabia... ela sabia, porque naquele túnel escuro, sem princípio nem fim, naquele negro e perpétuo vazio, brilhava ainda uma luz diminuta, a luz não de uma esperança, mas de uma promessa.
Foi por isso que um dia, enquanto Onorina  mendigava sentada junto à rampa do porto, esse rosto que já não parecia capaz de expressar nenhum sentimento humano, iluminou-se de repente com um resplendor repentino, e seus olhos recobraram a vida que há tanto tempo os havia abandonado. Um homem e uma mulher conversavam em frente a ela, desfrutando placidamente do encanto embriagante do pôr-do-sol. Onorina os observava com todo o seu ser; e sua mente, desacostumada como estava de qualquer pensamento, debatia-se vertiginosamente com uma pergunta: "É ele ou não é?" E, quanto mais observava e quanto mais pensava, no seu rosto desenhava-se lentamente a marca de uma certeza, de uma esperança, de uma alegria que crescia e crescia e parecia que já não cabia no seu peito; "sim, sim, é ele!", dizia sua mente enferrujada; e, então, levantou seu braço, seu triste e decrépito braço e, com imensa doçura, puxou a manga do homem que beijava sua amada com tanta ternura.
Virou-se o homem, e no seu rosto não havia ternura. "Ora, senhora! Está me sujando a camisa!" O homem colocou um real na sua mão e partiu apressado puxando sua amada, e Onorina não teve tempo sequer de falar-lhe. Lembrou de repente que já não existia, que não era Onorina, que era somente um monte de ossos, carne e imundície. Observou-o se afastar e então sorriu, enquanto as lágrimas molhavam seus olhos secos de vida. "Voltou", disse. "E está tão bonito... e se vê tão contente com sua esposa tão novinha e tão bela".
Levantou-se lentamente e voltou com muito trabalho ao seu canto sob a estátua. "Agora já posso morrer", pensou. E, deitada no chão, fechou os olhos e nunca
mais os abriu.