sexta-feira, 6 de maio de 2011

CONTO - A promessa de Onorina (Alejandro Reyes)

Todos os dias, às seis da manhã, Onorina abria o pequeno baú que guardava sob a cama e, com infinito cuidado, começava a tirar as lembranças que ali entesourava, colocando-as, uma a uma, sobre uma pequena e desalinhada mesa. Havia ali um gato de pelúcia, sujo e completamente corroído pelo tempo, um par de sapatos de bebê, duas bolas de gude - uma azul e outra verde -, uma carteira de estudante de primeiro grau, um velho retrato e, finalmente, o maior de seus tesouros: uma carta, amarelada e tão antiga, que havia de desdobrá-la com o cuidado de um miniaturista chinês, para evitar que se transformasse irremediavelmente em poeira. Sentada frente à mesa na única cadeira que possuía, Onorina  arrumava seus pertences com meticulosidade de relojoeiro: à esquerda, em leve ângulo, os sapatos; à direita, o gato de pelúcia, sentado; no meio, o retrato, e frente a ele, a carteira de estudante; as gudes, ela as colocava em frente aos sapatos, a azul em frente ao esquerdo e a verde em frente ao direito. Depois abria a carta com extraordinária cautela, desdobrando parcimoniosamente as três páginas de que era composta, enquanto um resplendor beatífico iluminava gradualmente seu rosto enrugado. E, então, ela lia em voz alta. Não sabia ler, mas isso pouco importava; de fato, o que para outras pessoas teria representado um obstáculo intransponível, para Onorina não era mais que um obséquio de Deus ou de alguma outra divindade que, por ventura, ter-se-ia interessado em seu destino, pois lhe permitia receber, a cada dia, novas notícias, fazendo deste rito matinal um momento de ditosa expectativa e quotidianamente renovada alegria.
"Querida mamãe", começava todas as cartas, "espero que você esteja bem de saúde e tão bonita como você sempre foi". "Se você soubesse, meu filho", pensava, também em voz alta, e continuava sua leitura. Seguia então o relato cativante de toda uma série de aventuras e viagens a terras remotas e desconhecidas, conquistas de belas mulheres, perigos dos quais dificilmente escapava, mostras de habilidade e destreza, de valentia e coragem, interrompido pelas freqüentes e emotivas interjeições de Onorina, cujo rosto, crispado por momentos pela mais profunda preocupação e angústia, não deixava de transparecer um radiante orgulho materno perante as desatinadas andanças do seu filho. Invariavelmente, as cartas terminavam dizendo:
"Agora estou tentando conseguir uma grana.
Logo que eu tiver, estarei de volta a casa,
para a gente viver juntos como antes.
Por favor, não morra antes de eu voltar.
Teu filho, Prudêncio."
"Como são difíceis os pedidos dos filhos!", exclamava Onorina em voz alta. "Mas eu prometi e vou cumprir, ainda que eu tenha de agüentar esta vida cem anos." E duas lágrimas percorriam trabalhosamente os sulcos que os anos haviam gravado no seu rosto outrora belo, enquanto suas mãos cansadas dobravam cuidadosamente a carta e começavam a arrumar novamente seus tesouros no baú.
Às sete horas, regava suas inúmeras plantas e flores, todas elas com nome próprio, e lhes contava as novidades que Prudêncio relatava em sua carta, no caso de alguma delas não ter escutado a leitura em voz alta. Perguntava-lhes também sobre o estado de saúde das suas folhas e ramos, sobre as formigas e outros insetos que, de vez em quando, atormentavam sua plácida existência, provocando uma molesta e pertinaz coceira, e sobre os capulhos que em algumas delas começavam a florescer. Perguntas todas que ela própria respondia, interpretando com infalível certeza o que suas companheiras de solidão lhe diziam com o silente meneio das suas folhas sob o sol.
Às sete e meia, vestia o mesmo vestido azul de todos os dias, remendado infinitamente para burlar os estragos do tempo e para responder às necessidades de um corpo tão dramaticamente transformado através dos anos. Despedia-se então das suas plantas e percorria o caminho desde o quarto onde vivia, construído precariamente com tábua e papelão na varanda de fundo de um antigo sobrado, até a porta que dava para a rua, percurso extremamente perigoso para quem não estivesse habituado a andar por esses lugares, pois tinha de se esquivar daquelas partes do piso que, a qualquer momento, se desmoronariam, carcomidas pelo cupim, o descuido e a miséria, e das outras que já haviam caído, deixando pequenos ou grandes buracos, como aquele por onde desapareceu, uns anos atrás, Florisvaldo, o caçula de seu Nelson, transformando-o nessa massa humana que agora mal se mexia em seu canto no quarto e que passava os dias olhando a vida passar pela janela e balbuciando incoerências. Tinha também de se esquivar do pedaço de viga que caiu um tempo atrás, bloqueando parcialmente a porta que levava ao canto onde morava Argemira com seus oito filhos e seis gatos, para depois atravessar o estreito e fedorento corredor que levava à escada de saída, não sem antes passar em frente ao único banheiro que servia às sete famílias que ali viviam.
Já na rua, Onorina dirigia-se com seu passo cansado rumo ao Terreiro de Jesus, observando o piso diligentemente para evitar a desagradável experiência de meter o pé num pedaço de excremento humano, seja os que foram produzidos por ali mesmo ou os que as empregadas dos hotéis varriam nessa hora das escadas, utilizadas regularmente por todo o tipo de criaturas noturnas para ali se desembaraçarem do peso das suas entranhas.
O Terreiro nessa hora resplandecia com sua grandeza colonial. Alguns bêbados dormiam sob as árvores ao lado da formosa fonte, as lojas começavam aos poucos a abrir as suas portas, e alguns turistas atravessavam a praça rumo ao largo do Pelourinho. Era, quiçá, a hora mais bela do dia, quando tudo estava impregnado de lentidão e silêncio. Mas Onorina nada disso percebia. Ela caminhava no seu próprio mundo, povoado por suas próprias belezas e suas próprias misérias. Caminhava e falava consigo mesma. Não como muitos pensavam, com algum ente invisível, produto da sua imaginação; Onorina falava consigo mesma pois, muitos anos atrás, quando morreu seu marido, quando seu filho partiu, quando a abandonaram aqueles que se diziam amigos, compreendeu que a vida era feita de solidão e que no mundo reinava a incompreensão. Decidiu que tanto fazia falar com os outros ou falar consigo mesma, pois, afinal de contas, o resultado era igual: continuamos vivendo sós e morremos sós; e, pelo menos, falando sozinha, não tinha que agüentar impertinências alheias nem discutir com gente que tivesse opiniões distintas das suas, pois ela nunca discordava de si mesma e, além disso, suas conversas eram bem mais interessantes do que as do resto das pessoas, e não estavam sujeitas ao azar dela se encontrar, ou não, com alguém que pudesse se interessar pelas coisas que, em determinado momento, surgiriam em sua cabeça.
Assim, conversando amenamente em tão prazerosa companhia, entrava na catedral e sentava-se no mesmo banco de sempre, nem muito perto nem muito longe do altar. Dali podia ver claramente a imponente imagem de São Salvador, pousado lá no alto, tão longe do mundo e de suas dores, reluzindo mais esplendoroso e mais radiante que nunca, graças às mãos milagrosas de um magnífico restaurador peruano que por esses rumos havia passado, dotando sem dúvida o já restaurado Cristo de uma maior capacidade ou vontade de escutar as súplicas que Onorina lhe dirigia diariamente ha tantos anos, para que lhe devolvesse seu filho, ausente desde que, na terna idade de dezesseis anos, partiu num navio mercante rumo a terras desconhecidas.
Às oito, saía da catedral e dirigia-se, com seu passo lento e alquebrado, à Ladeira da Conceição, a qual descia com extraordinária habilidade, considerando-se o estado desconjuntado da sua triste ossatura. Não usava o elevador, porque assim economizava cinco centavos, mas também porque tinha medo de se sentir prensada numa lata com tanta gente, como sardinha. Ao passar em frente à igreja de Nossa Senhora da Conceição, persignava-se, mas não entrava para rezar pela volta de Prudêncio, pois não queria perder um minuto para chegar ao porto, negligência que, sem dúvida, tinha algo a ver com a demora do seu filho, pois, como todos sabem, é a ela, a Nossa Senhora da Conceição, e não a São Salvador, a quem se deve rezar por aqueles que partem ao mar, pois ela é nada menos do que Iemanjá, deusa das águas, rainha única do destino dos homens no oceano. Alheia a estas sutilezas divinas, Onorina chegava ao porto e lá, sentada junto aos pescadores, observava o mar impassível, durante exatamente duas horas e um quarto. As velas dos barcos lançavam fulgores de brancura e beleza sobre esse fundo de azul impecável, escuro e profundo primeiro, esverdeado ao aparecer a silhueta langorosa da ilha de Itaparica, límpido e transparente ao fim, bem ao longe, lá onde se perde o pensamento e o sonho, lá onde vivem Deus e as outras criaturas celestiais que, segundo se diz, sem que jamais uma observação cuidadosa da vida tenha-o comprovado, guiam os passos solitários dos homens no mundo. O forte de São Marcelo languescia na sábia e profunda decadência da velhice, exsudando tempo e história das suas pedras antigas. Homens rudes e suarentos vendiam peixe nos pontos de venda junto à rampa do Mercado Modelo, alguns bêbados discutiam bebendo cerveja numa barraquinha vizinha, e um berimbau se ouvia acompanhando uma velha cantiga: " E me falou meu mano velho, me falou tão tristemente, tou cansado de cantar, este samba entristecente...". Mas para Onorina, nada disso tinha importância; ela só tinha olhos e ouvidos para procurar no mar algum indício do navio no qual chegaria a qualquer momento Prudêncio. Havia no seu rosto uma expressão de resignada e melancólica expectativa, expressão que só por uns momentos se quebrava com o fulgor de uma alegria fugaz, inspirada por alguma visão prometedora que só ela via, mas que se dissipava tão rápido quanto havia chegado, deixando no seu lugar o rastro muito tênue de uma amargura inconfessa.
Às dez e meia, compreendendo que não, não seria esse o dia em que voltaria Prudêncio, talvez amanhã, subia a ladeira de volta à sua casa, chegava à Praça da Sé, e desta vez não passava pelo Terreiro; entrava na Rua Três de Maio, virava na Rua da Oração, e subia finalmente as escadas que a levavam de volta ao humilde aposento.
Às onze em ponto, Onorina carregava sobre a cabeça o tabuleiro cheio de doces de coco, preparados na noite anterior, e um pequeno banco na mão direita. Saía novamente rumo ao Terreiro onde, sob a sombra de uma árvore luxuriante, acomodava-se para começar sua faina do dia. Sua árvore estava disposta estrategicamente para ela poder espreitar, ao mesmo tempo, a catedral e a igreja de São Francisco, e a elas mandava freqüentes olhares reprovadores que, claramente, exprimiam um calado e orgulhoso desgosto ante a indiferença tanto de São Salvador quanto de São Francisco, e tanta piedade inspirava o sofrimento calado desse olhar, que não pareceria estranho se a qualquer momento um deles, comovido enfim pelas penas de tão inocente criatura, descesse do seu altar para lhe trazer, pessoalmente, pela mão, o seu filho Prudêncio.
Durante as seis horas em que permanecia sob a árvore, interrompendo seu trabalho somente durante meia hora para comer seu almoço de feijão e farofa no bar da esquina, Onorina vendia praticamente todos os seus doces, apesar de não serem particularmente deleitosos ao paladar, devido aos numerosos descuidos que ocorriam durante sua preparação, resultado das distrações próprias da interminável e fascinante conversa consigo mesma, que se prolongava desde que acordava até ir dormir. Mas era justamente esta conversa que lhe garantia a assiduidade da sua freguesia, a qual comprava seus doces pelo puro prazer de escutar as memoráveis reflexões sobre a vida, a morte, a ordem divina e as inconveniências dos talcos para bebês, sobre os quais lembrava ter ouvido, em algum lugar, que podiam causar cegueira quando não utilizados devidamente. Estas conversas solitárias também lhe causavam, é justo dizê-lo, certas agressões e maldades de moleques sem nada melhor para fazerem do que atormentar uma solitária velha, e que se divertiam zombando dela, jogando-lhe bolas de papel, puxando o seu vestido e fingindo roubar os seus doces. Mas Onorina não se alterava; comentava, consigo mesma, a deplorável decadência dos valores e o desrespeito da juventude, e estas reflexões a conduziam a novas e profundas cogitações sobre os caminhos do destino e as vicissitudes do existir, que a distraíam totalmente dos seus jovens agressores.
Às cinco da tarde, apanhava seu tabuleiro e seu banco e caminhava rumo à mercearia, onde comprava coco e açúcar para os doces do dia seguinte. Depois voltava para casa, preparava sua mercadoria, e às sete estava de volta ao Terreiro, caminhando rumo à igreja de São Francisco. Lá sentava-se perto do altar, envolta em tão áurea e exuberante profusão de anjos e querubins, que seria impossível imaginar que suas súplicas, tão humildes e tão sinceras, não seriam escutadas e levadas prontamente ao palácio desse grande Senhor que rege o mundo desde seus distantes e inacessíveis confins etéreos, e que Ele não responderia com a rápida e inequívoca determinação com a qual castiga quotidianamente aqueles pecadores que se afastam da Sua lei. Rezava durante três quartos de hora, dirigindo-se alternativamente a Jesus e a São Francisco, ainda que seja possível imaginar que nem um nem outro davam-lhe muita atenção, pois Jesus estava morto e São Francisco muito ocupado tirando-o da cruz.
Às oito, de volta no seu minúsculo mas querido quarto, tirava o vestido, despedia-se das suas plantas, despedia-se de si própria, deitava-se, fechava os olhos, e dormia um sono sem sonhos.
Esta vida, com suas penas e suas incertezas, mas não inteiramente desprovida de certos prazeres, poderia ter continuado durante muitos anos mais (até o dia em que os santos lhe trouxessem de volta Prudêncio, ou até o dia em que a Biologia com seus inelutáveis desígnios decidisse negar-lhe a possibilidade de cumprir sua promessa e a levasse com ela rumo à Grande Incógnita, sem antes ter visto seu filho), não fosse porque a Ordem e o Progresso, que até então haviam percorrido todo o Pelourinho, detendo-se no Terreiro de Jesus, decidiram avançar até o bairro de São Dâmaso, libertando, assim, seus habitantes da miséria, ou, para ser mais exato, libertando o resto da população da necessidade de olhar a miséria de tão perto. Chegaram um dia os representantes de um renomado órgão governamental e, esquivando-se corajosamente de vigas caídas e de buracos mortais, informaram os habitantes da infeliz residência de que deveriam mudar-se em menos de um mês e que, caso se apresentassem prontamente no escritório de dito órgão, receberiam justa indenização pelo incômodo de ter que perder seu lugar de residência ou trabalho. A Onorina de nada informaram, pois ela não tinha o costume de escutar humano nenhum que não fosse ela própria, e muito menos um desconhecido. Argemira, sua vizinha, explicou-lhe por todos os meios a acompanhá-la para receber sua indenização, mas Onorina nada compreendeu, pois achou absurdo que alguém quisesse pagar pelo miserável quartinho onde morava, e muito menos que alguém teimasse em privar uma inofensiva velha do único lugar onde podia e sabia viver, com suas plantas, seu baú, sua cama, sua mesa, sua cadeira e seus horários. Não foi reclamar seu dinheiro nem procurou outro lugar para morar, nem sequer quando viu os preparativos febris de cada uma das famílias do sobrado e de todo o bairro em geral, convencida de que ninguém a perturbaria e de que a deixariam continuar vivendo em paz no seu diminuto canto sem incomodar ninguém.
Foi assim que, numa terça feira, às dezessete e vinte, quando voltava do seu dia de trabalho no Terreiro, encontrou o formigueiro de homens que entravam e saíam do sobrado. Incomovível, passou entre eles e subiu vagarosamente as escadas, carregando seu tabuleiro, seu banco e uma sacola com o açúcar e o coco, pensando em voz alta que estava atrasada e que, se não se apressasse, chegaria tarde à benção das sete; e foi só quando chegou à sua varanda que seu rosto transformou-se com a mais pavorosa expressão de terror. Amélia, a mais querida das suas plantas, um hibisco que naqueles dias começava a florescer, estava destroçada; um tijolo a havia esmagado, suas pétalas, outrora juvenis e esperançosas, jaziam inertes, esparramadas pelo chão, seus talos quebrados, sua vida destruída. E suas outras plantas, Jandira, Edinólia, Valquíria, Cândida, Renata e Fátima (a mais vaidosa)... todas elas quebradas, pisoteadas, aleijadas pelo descuido dos homens que passavam atropeladamente de um lado para o outro e que, nesse momento, levavam sua cama para jogá-la no terreno baldio, onde se amontoavam os escassos pertences que os antigos moradores deixaram para trás, confundidos com todo o tipo de desperdícios.
— Não! - gritou; e foi só nesse momento que os homens deram-se conta da sua presença.
— Senhora, faça o favor de sair, a senhora não pode ficar aqui - disse o capataz.
Mas Onorina não ouvia nada, via suas plantas esmagadas, sua cama que desaparecia, sua mesa quebrada, as pouquíssimas coisas que possuía, mas que, com tão delicado carinho, cuidava e arrumava e acomodava, para que tudo estivesse no seu devido lugar e tudo gozasse do mesmo cuidado e respeito que é devido a todas as coisas de Deus; e agora estes homens pegavam seus pertences com suas mãos sujas e esmagavam e pisavam tudo, como se nada fosse sagrado, como se nada merecesse respeito, como se nada disso tivesse valor algum, o valor do carinho, do cuidado, do amor, da lembrança... da lembrança, e... meu Deus!... não!... a lembrança... seu baú... seu baú que não estava!
— Cadê meu baú? Cadê meu baú? - gritava desesperada.
— Que baú, senhora?
O capataz e outros homens, entre comovidos e perplexos, interromperam suas tarefas e observavam Onorina que corria de um lado para o outro, procurando seu baú nos lugares mais absurdos, chorando, falando sem parar, dirigindo-se às suas plantas, a Prudêncio, a São Francisco e não se sabia a quem mais, com uma desesperada e interminável torrente de palavras que, ainda que totalmente incompreensíveis, comunicavam com lastimosa nitidez o mais terrível desespero. Uns quiseram chorar, outros quiseram rir, e de fato alguns o fizeram; mas, no fundo, todos sentiram uma indefinível angústia que não era senão o reflexo da mesma impotência humana perante os inclementes e inexplicáveis caprichos do destino.
No entanto, por mais pena que se possa sentir de uma desesperançada criatura, por mais que o coração humano queira se comover pelas aflições alheias, o mundo e a vida continuam, e cada um continua carregando sua própria cruz, cada um cumprindo seu próprio destino, de forma que o capataz não teve mais opção senão a de enxotá-la, conduzindo-a até a rua com a ajuda de dois musculosos e igualmente comovidos trabalhadores.
Pelas ruas errou Onorina sem direção nem propósito, chorando e falando incoerências, pensando que deveria estar preparando os doces para o dia seguinte e lembrando que já não fazia mais sentido preparar nem pensar em nada, e pensando novamente que não poderia amanhã vender seus doces depois de ler a carta de Prudêncio e de ir esperá-lo no porto, e novamente lembrando que já não havia mais carta, nem gato de pelúcia, nem gudes, nem retrato, nem carteira de estudante, e perguntava-se como ia saber agora onde estava seu filho, o que fazia e quando voltaria, e pensava então em voltar à casa para procurar o baú e preparar seus doces e conversar com suas plantas, mas dava-se conta de que era inútil porque estava perdida, não sabia onde estava, quase nem sabia quem era ela, já não se lembrava mais de quase nada, apenas que já não tinha mais suas plantas nem seu baú nem sua cama. E caminhou e caminhou, e as crianças riam apontando a louca que passava chorando, e as mulheres olhavam sem saber se sentiam desprezo ou terror, quando não indiferença, e os homens fechavam os olhos para não ter de pensar e poder continuar bebendo e rindo e falando e dançando na noite que começava a se agitar com a expectativa de se ouvir Olodum e de se perder no frenético prazer dessa orgia, ao mesmo tempo maravilhosa e sórdida, de música, dança, cerveja e sexo, repetida toda terça feira depois da benção de São Francisco, que permitia a todos esquecerem-se por um momento que havia miséria, dor e tristeza. De tanto chorar, esgotaram-se as lágrimas; e de tanto vagar, foram cansando-se as pernas, até que, já sem saber por que estava tão triste, deitou-se no passeio e dormiu.
Quando acordou, às cinco e meia da manhã, e se deu conta de que não havia sido um pesadelo, compreendeu que já não era ninguém, que havia deixado de existir. Então quis deixar de viver, pois não há nada mais duro do que ter que viver quando já não se é ninguém, quando já não se existe; mas lembrou-se de sua promessa e soube que ainda não podia partir. Foi assim que começou a sobreviver como tantos outros o fazem, dormindo na rua, comendo o pouco que recebia de esmolas. Por um tempo tentou aferrar-se à idéia de que sua vida ainda valia, de que ela ainda existia. Ia à catedral e à igreja e rezava aos santos, ia ao porto à espera de Prudêncio, tentava inventar novos horários e novos afazeres. Mas a apatia e o desespero iam minando lentamente seu espírito, roubando-lhe aos poucos o que ainda restava de dignidade e orgulho. A sujeira, o abandono, a solidão, a perda irremediável da esperança de se ver algum dia num espelho e se dizer que algo ainda ficava belo nesse seu rosto, o desprezo raivoso do povo que a olhava como se não fosse mais do que um estorvo, algo fétido e desagradável que se devia evitar para não se sujar, algo não muito diferente de um excremento no passeio... e, pior ainda, sua lenta aceitação disso tudo, o fato de já não se revoltar contra esse desprezo mas, ao contrário, achá-lo normal e perfeitamente justificável, o fato de já não sentir vergonha nem gratidão, nem dor, nem alegria, quando alguém se apiedava dela-lhe e dava uma esmola ou fazia qualquer gesto que reconhecesse sua existência como ser humano, e agora resignava-se com a indolência de um autômato que leva à boca o que recebe na mão, se é que recebe, e quando não, simplesmente não come... tudo isto ia corroendo até a sua última fibra de humanidade, convertendo-a irremediavelmente nesse ser andrajoso e imundo com o olhar perdido no nada, nesse nada que era o reflexo do vazio do seu espírito... convertendo-a numa coleção de ossos, carne e imundície aparentemente desabitada de alma. Em pouco menos de um ano, Onorina já não ia à igreja, já não rezava aos santos, já nem sequer conversava consigo mesma e, se saía do lugar no qual havia feito seu novo lar, sob a imensa escultura no antigo local do Mercado Modelo, era para se sentar junto à rampa do porto e observar o mar, o impassível e distante mar, sem pensar, sem desejar, sem sonhar, simplesmente observando, esperando, esperando...
Passaram-se meses, anos, não se sabe quantos, pois, para quem vive como Onorina, o tempo não existe, o tempo é um túnel escuro, sem princípio nem fim, sem razão nem motivo, um escuro e perpétuo caminhar sem destino. Passaram-se os anos e já ninguém sabia por que essa velha ainda vivia, essa velha que há tantos anos já não existia. Mas ela sabia... ela sabia, porque naquele túnel escuro, sem princípio nem fim, naquele negro e perpétuo vazio, brilhava ainda uma luz diminuta, a luz não de uma esperança, mas de uma promessa.
Foi por isso que um dia, enquanto Onorina  mendigava sentada junto à rampa do porto, esse rosto que já não parecia capaz de expressar nenhum sentimento humano, iluminou-se de repente com um resplendor repentino, e seus olhos recobraram a vida que há tanto tempo os havia abandonado. Um homem e uma mulher conversavam em frente a ela, desfrutando placidamente do encanto embriagante do pôr-do-sol. Onorina os observava com todo o seu ser; e sua mente, desacostumada como estava de qualquer pensamento, debatia-se vertiginosamente com uma pergunta: "É ele ou não é?" E, quanto mais observava e quanto mais pensava, no seu rosto desenhava-se lentamente a marca de uma certeza, de uma esperança, de uma alegria que crescia e crescia e parecia que já não cabia no seu peito; "sim, sim, é ele!", dizia sua mente enferrujada; e, então, levantou seu braço, seu triste e decrépito braço e, com imensa doçura, puxou a manga do homem que beijava sua amada com tanta ternura.
Virou-se o homem, e no seu rosto não havia ternura. "Ora, senhora! Está me sujando a camisa!" O homem colocou um real na sua mão e partiu apressado puxando sua amada, e Onorina não teve tempo sequer de falar-lhe. Lembrou de repente que já não existia, que não era Onorina, que era somente um monte de ossos, carne e imundície. Observou-o se afastar e então sorriu, enquanto as lágrimas molhavam seus olhos secos de vida. "Voltou", disse. "E está tão bonito... e se vê tão contente com sua esposa tão novinha e tão bela".
Levantou-se lentamente e voltou com muito trabalho ao seu canto sob a estátua. "Agora já posso morrer", pensou. E, deitada no chão, fechou os olhos e nunca
mais os abriu.

5 comentários:

  1. Um texto triste, relatando uma crítica social em relação aos desabrigados para restauração do centro histórico de Salvador. Criativo que trás a tona uma longa discussão que se alastra ao longo dos dias atuais, a exclusão social.

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  2. Exatamente!! Trata-se de um texto literário que é marcado por certa melancolia no que se refere aos acontecimentos com a sua protagonista, Onorina. Todos leem na esperança de que, ao final, Onorina reencontre seu filho e "tenha a sua dignidade recuperada". Esperança essa que é frustada com o desfecho que é dado pelo autor.
    No final das contas, a mensagem que nos é passada é a de uma sociedade perpassada pela problemática da exclusão social, atrelada a fatores socio-históricos.

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  3. Muito bom mesmo! Me emocionei demais com o conto, tanto pelo final inesperado (que me fez gostar ainda mais da leitura),quanto pela visão de situações reais na qual várias pessoas passam neste momento. Visualizei várias pessoas da cidade baixa, várias pedintes e ainda hoje quando passo pelo local consigo lembrar e atrelar o texto a alguém.
    A vida, a cidade, o país; quantas "Onorinas" deve existir nesse mundo?

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